quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Cassavetes...

Grande cara esse John Cassavetes... Ator de mão cheia, dirigia filmes com seus amigos atores como que toca numa jam-session... "A morte do bookmaker chinês" (1976) tem uma sinopse que não consegue capturar o prazer de vê-lo: "Mr. Sophistication e suas De-Lovelies se apresentam todas as noites, sob direção musical de Tony Maggio, no palco do Crazy Horse West, clube noturno de Los Angeles que flerta perigosamente com a decadência, mas que resiste às intempéries porque é administrado com amor e devoção por seu dono, Cosmo Vitelli." (cortesia de Sérgio Rizzo). Gostei muito do filme e a entrega do diretor em relação aos seus personagens que acabam por refletir a própria amargura do realizador: fazer aquilo que gosta com poucos e devotados amigos, como um bom e velho jazzman que toca para uma diminuta platéia. Abaixo o trailer e logo depois um belo texto de Leonardo Amaral sobre o filme.



Para um diretor cujo principal pensamento é o de doar-se todo pelo cinema e fazer daquilo a mais orgânica das coisas, A morte de um bookmaker chinês talvez funcione como a desilusão do homem perante seu sonho, seu objeto pleno, sua criação, sua paixão. O filme é uma história de amor e derrota travestido em noir. O jogo de sombras, a ambigüidade dos personagens são menos estética do gênero e muito mais a construção de um personagem em processo de perda de tudo aquilo que nada mais é que sua própria vida – como também era o cinema para Cassavetes.

O rompimento ainda maior com as regras do cinema noir diz respeito à própria câmera – que para Cassavetes deve ser sempre livre e pronta para mostrar e respirar próximo ao personagem (planos quase na pele de Ben Gazzara ou das suas garotas de bar, principalmente Rachel) -, ela passeia pelo clube de strip-tease por todos os seus cantos, mostrando muito mais o que ele tem de ruim do que propriamente de exuberante e excitante. Entretanto, é uma câmera que não condena, pelo contrário, ela é parte de tudo aquilo e seu olhar não é de condenação, denúncia, mas sim de desalento, descrença – por mais amor que exista do personagem Viteli por aquela vida e aquele mundo. Os corpos imageticamente apresentados não excitam, não pulsam, mas sim prenunciam a derrocada – somente há respeito pelo corpo de Rachel, ela é a única a qual a câmera endossa e dá um ar de todo respeito, mesmo ela sendo cantada pelos homens por ser uma dançarina de clube. A câmera do ambiente escuro e sujo ganha as ruas em busca de alívio, de respiração, mas o enquadramento fechado, o close-up, a noite e o dilema de Viteli sufocam a tudo isso. O caminho é em direção ao esfacelamento de tudo, como algo marcado e o mesmo Viteli acompanhado no início do filme, pelas ruas, por uma câmera baixa em movimento de travelling, no final está imerso às sombras, filmado de cima para baixo no corredor que fica abaixo da escada – em um dos primeiros planos, ele surge nesse mesmo corredor, ao microfone, para a apresentação do show e logo após sobe para se aproximar da câmera e chegar até o palco; agora ele desce as escadas e se limita à posição diminuta, abaixo de tudo. A esperança agora está perdida, o caminho é sem retorno.

Cassavetes tem o cinema como a melhor maneira de falar de vida – inclusive da própria vida – e isso fica evidente em todos os seus filmes e não menos em A morte de um bookmaker chinês. A forma de montar não chega a ser sincopada como em outros de seus filmes, mas dá conta de um universo em que há um processo quase irreversível de falência física e humana. Cassavetes fala do próprio cinema americano, em desconstrução na década de 1970 e em busca de tentar se encontrar, achando-se, em certos casos, no underground citadino. Aqui, o cinema ganha as ruas, mostra o cenário venal e desolador de Los Angeles. É uma espécie de tentativa de um diretor que quer um cinema muito mais próximo da paixão e da pulsão do que perto das relações de dinheiro e ego envolvidas. Ben Gazzara atira e paga sua dívida financeira com os gangsteres, mas passa a estar em dívida consigo mesmo – o que é sempre pior.

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